José Ruy P. de Castro - O Evangelho Vingativo

É evidente que o que se canta em canções ‘gospel’ é o que se prega do evangelho hoje; uma coisa não pode se dissociar da outra e, na verdade, se retroalimentam. A figura do artista sempre atraiu os olhares, sonhos e admiração dos não-famosos e, por isso, as mensagens desses artistas se disseminam muito facilmente através de suas próprias obras e também das revistas de personalidades, fofocas, fã-clubes, etc. Não é diferente hoje, apesar de tantos já estarem pregando a morte do pop star, concepção que é fruto do advento da Internet, aumento da pirataria, extinção do álbum físico e disseminação de artistas independentes. No meio ‘gospel’, no qual o impacto da pirataria tem sido menor, a figura do artista (ou ‘ministro’, como são chamados os artistas no meio ‘gospel’) ainda é mais forte do que em qualquer outro gênero musical. Os ‘ministros gospel’, quer queiram quer não os crentes de plantão, exercem as funções de artistas como quaisquer outros; possuem um público, fazem shows, têm seguidores. A ligeira diferença é que o público dos ‘ministros gospel’ insiste em dizer que a ‘glória é para Deus’ e os artistas insistem em fingir que a dão a Ele. Alguns até chegaram ao cúmulo de ‘ministrar’ de costas ao seu público de ‘adoradores extravagantes’. Se se quer aplaudir Deus através de um cantor, é melhor que não se faça, pois a glória de Deus não pode ser dividida com mortais. Deus não precisa de um intermediador para ‘mandar a glória que recebe para cima’. Deveríamos aplaudir os ‘ministros’, sim, por sua arte, sem divinizar aquilo que é humano. Ele não recebe aplausos por ser ‘ministro’, ele recebe aplausos por sua arte, e isso é ser artista.

Pois bem, a figura do artista permanece forte entre os evangélicos e esses alimentam, com suas mensagens, o público ouvinte que em grande parte enche nossas igrejas, e, conseqüentemente, seus pastores. Os pastores são influenciados pelas canções e transmitem mensagens similares aos fiéis. Em suas congregações, existem os artistas que propagam suas mensagens e que assimilam as mensagens dos pastores, e assim segue. É um círculo que se retroalimenta, como já afirmava. Tentar descobrir quem influencia mais o outro é como tentar descobrir quem veio primeiro: o ovo ou a galinha.

A canção “Sabor de Mel”, hit gospel, possui letra que evidencia o evangelho vingativo que se dissemina hoje. “Quem te viu passar na prova e não te ajudou/Quando ver você na bênção vão (sic) se arrepender”. A aceitação e reprodução nas igrejas comprova que se canta aquilo que se vive. Façamos algumas considerações pertinentes sobre isso:

O entendimento e prática equivocados do princípio da fé no bom Deus, já abordado anteriormente, também contribuem para o evangelho vingativo: a fé no bom Deus, princípio óbvio, levou à distorção de que ‘Deus quer o melhor para mim’. O pensamento é o de que, ora, se o melhor para alguém é a vitória, o carro novo, a casa nova e a prosperidade, logicamente Deus quer tudo isso para a pessoa, o que é mentira. Sendo assim, se alguém quer atrapalhar a conquista desses objetivos na vida da pessoa, esse alguém é enviado de Satanás para atrapalhar os planos do próprio Deus. Logo, nosso sentimento de vingança contra essa pessoa que nos atrapalha é encoberto pelo argumento do zelo pela glória de Deus. Existem duas razões principais para rechaçarmos esse pensamento: 1) a aplicação desse pensamento não vale mais para os dias de hoje. A lei do talião foi totalmente submetida à lei do amor quando Jesus veio e disse que atirasse a primeira pedra na mulher adúltera aquele que não tivesse pecado, ou quando disse que se andasse uma segunda milha com aquele que lhe obrigasse a andar uma. Essa lei era perfeitamente aplicável no Antigo Testamento e é bem recorrente nos Salmos. Afinal, no Antigo Testamento, ir contra o judeu justo ou o rei de Israel era ir contra o próprio Deus Jeová, que queria se fazer conhecido das outras nações através do povo de Israel. Ir contra a monarquia, por exemplo, era ir contra a linhagem messiânica e contra o próprio Messias, pois esse viria, na concepção dos judeus, como rei temporal e traria paz permanente. Portanto, citar um Salmo como o 109 ou dizer que a vingança é bíblica porque Deus preparou uma mesa diante dos inimigos de Davi no Salmo 23 é sucumbir ao engano do evangelho vingativo (no Salmo 23 em si, a interpretação não deveria ser a de vingança, pois, se analisarmos o contexto, veremos que o Salmo está mostrando situações difíceis nas quais o salmista, ainda assim, encontra descanso. O enfoque não é a vingança. Essa é uma análise distorcida); 2) a aplicação desse pensamento leva ao que o autor Ricardo Quadros Gouvêa intitula de ‘a piedade pervertida’, em livro homônimo. Tomar passagens de vingança do Antigo Testamento e tentar trazê-las para os dias de hoje é obra fundamentalista que, ao invés de pregar o amor aos inimigos, o que seria a piedade legítima, acaba por pervertê-la esperando o ‘sabor de mel’ da vitória cujo componente necessário é ver o arrependimento do inimigo por ter se oposto ao alcance dos objetivos egoístas da pessoa, que pensa que seus desejos são os desejos de Deus com base no entendimento distorcido da fé no bom Deus. Para aqueles que, fundamentalistas que são, insistem em dizer que é possível empregar a lei do Talião ainda hoje, deixo as palavras do já citado Ricardo Quadros Gouvêa: “Toda boa teologia é, portanto, eminentemente bíblica. Isso significa colocar o sistema doutrinário sempre, e novamente, sob o crivo das Escrituras. O fundamentalismo, ao contrário, usa a Bíblia apenas como subsídio para provar a validade dos dogmas. [...]. Isto representa uma inversão, ou pior, uma verdadeira perversão”.

Portanto, queiramos, como cristãos, que a nossa maior vitória, com sabor de mel, seja mostrar o amor aos nossos inimigos, e não querê-los fazer se arrepender por terem feito frente à realização dos nossos objetivos.

Referências
GOUVÊA, Ricardo. A Piedade Pervertida – Um Manifesto Anti-Fundamentalista Em Nome de Uma Teologia de Transformação. São Paulo: Grapho, 2006.

Fonte: Enviado por E-mail.

Um comentário:

  1. Excelente o texto! Muito bom mesmo.
    Só não concordo com o uso do termo "fundamentalista", pois esse termo foi usado historicamente para caracterizar os protestantes que não aderiram à Teologia Liberal, por continuarem crendo na inspiração divina das Escrituras, ao contrário dos liberais. (Veja uma definição de fundamentalismo aqui:http://tempora-mores.blogspot.com/2011/01/um-credo-para-os-fundamentalistas.html).
    Abraços!

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